19 Novembro 2021
A Comissão Independente da França sobre Abuso Sexual na Igreja desafia lideranças católicas a examinar o quanto a rígida moralidade sexual tem fomentado os abusos sexuais.
A reportagem é de Mélinéé Le Priol, publicada por La Croix, 17-11-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Nove entre dez católicos na França firmemente acreditam que a Igreja precisa mudar sua atitude em relação ao sexo, de acordo com os resultados de uma pesquisa feita no mês passado, em parceria com La Croix.
Muitos teólogos morais no país concordam com esses apontamentos.
Um deles diz que a reformulação do ensino da Igreja sobre sexualidade humana é um dos mais “urgentes” e um dos mais “difíceis” desafios enfrentados pelo catolicismo contemporâneo.
A Comissão Independente sobre Abuso Sexual na Igreja (CIASE), a qual recentemente publicou um chocante relatório sobre os casos de abusos na França nos últimos 70 anos, concorda.
Uma das recomendações feitas no relatório é para examinar cuidadosamente “como o paradoxo do excesso de fixação da moralidade católica sobre assuntos sexuais tem um valor contraproducente na luta contra os abusos sexuais”.
O relatório da CIASE aponta que a persistente rigidez da Igreja sobre temas da sexualidade tem levado a uma situação paradoxal pela qual muitos católicos, especialmente padres, têm cometido sérias transgressões de acordo com a ideia de que “se você não respeita todas as leis, então você não respeita nada”.
Soma-se a isso a confusão sobre os vários “pecados contra a carne”, que a tradição católica agrupou sob a égide do sexto mandamento: “Não cometerás adultério”.
“A enumeração de atos sem gradação de sua seriedade é altamente problemática porque, por exemplo, não se pode colocar a masturbação e o estupro no mesmo nível”, lamentou Marie-Jo Thiel, uma premiada especialista em ética católica, professora de Teologia na Universidade de Estrasburgo.
Como outras pessoas, ela considera o estupro “um crime que mata outra pessoa”, o que na verdade seria uma violação do quinto mandamento.
“Até hoje, tudo o que sai do paradigma promovido pela Igreja seria 'errado'”, disse a irmã dominicana Véronique Margron, presidente da Conferência de Religiosos e Religiosas da França (Corref).
“Assim, mantemos a confusão entre o errado e o fracasso, que todos os seres humanos encontram em um momento ou outro em sua vida emocional e sexual. Como resultado, não sabemos como reconhecer o que é realmente errado, como violência sexual ou perceber a outra pessoa como um objeto”, disse ela.
O foco do catolicismo na sexualidade e na procriação intensificou-se desde o século XIX em proporção à perda de influência sociopolítica. Mas esse foco na verdade remonta ao início do Cristianismo.
A contribuição de Santo Agostinho de Hipona é particularmente “pesada” nesta matéria, segundo Alain Thomasset, s.j., professor do Centre Sèvres, a escola jesuíta de teologia em Paris.
“Para Santo Agostinho, o desejo sexual permaneceu um efeito do pecado original. Só é salvo pelo ato da procriação dentro do casamento”, disse ele.
O Concílio Vaticano II certamente abriu a sexualidade a outros fins que não a procriação, como a comunhão entre os esposos.
Mas Thomasset acredita que ainda há muito trabalho a ser feito para transcender a cultura meramente “do que é permitido e do que é proibido” e para ampliar nossa visão.
“A ética sexual católica continua muito normativa”, observou o jesuíta.
“É muito mais normativo do que a doutrina social da Igreja, que leva em conta as relações, as circunstâncias, as intenções, a complexidade da realidade, etc. A antropologia relacional, já presente na doutrina social, seria bem-vinda na ética sexual”, argumentou.
A encíclica Humanae vitae, de 1968, com sua proibição da contracepção artificial, contribuiu muito para descreditar o discurso da Igreja sobre a sexualidade.
Em seguida, o livro de 2019, “No armário do Vaticano”, de Federic Martel, que alegava a existência generalizada da homossexualidade (e pedofilia) entre padres e bispos em Roma, parecia enfraquecer ainda mais a voz da Igreja sobre o assunto.
Alguns católicos lamentam isso. Eles acreditam que a Igreja está certa em insistir que nossos corpos são um presente de Deus que não deve ser abusado ou que a intimidade sexual não deve ser banalizada em uma época em que a pornografia nunca foi tão facilmente acessível.
Então, é concebível que possa haver uma evolução do ensino da Igreja sobre a sexualidade humana?
“Em primeiro lugar, devemos ter em mente que boa parte do episcopado francês continua marcado pela herança de João Paulo II e Bento XVI, que defenderam uma moral sexual com normas claras, em nome da natureza humana”, enfatizou Francine Charoy, uma teóloga moral que deu aulas por 20 anos no Institut Catholique de Paris.
O Papa Francisco adotou uma abordagem diferente, encorajando mais discernimento em situações complexas. Mas ele não mudou a doutrina da Igreja quanto à substância da matéria.
Isso deixou alguns teólogos “decepcionados”.
Eles acreditam que o papa poderia fazer mudanças no Catecismo da Igreja Católica (que, entre outras coisas, chama os atos homossexuais de “intrinsecamente desordenados”), como fez em 2018 a respeito da pena de morte.
Charoy, no entanto, quer ver a Igreja ir além de um “confronto entre dois blocos”, progressista e conservador.
“Precisamos trabalhar em sinodalidade entre diferentes teólogos, para analisarmos juntos a negação à pedofilia, na qual a instituição permanece há tanto tempo”, argumentou.
O teólogo disse que seria uma forma de começar a desmontar a “cultura do silêncio” destacada pelo relatório da CIASE.
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Comissão de abusos diz que a Igreja está “fixada” na moralidade sexual - Instituto Humanitas Unisinos - IHU